Nós e Todos os Outros...
Dançam nos meus passos... (2011, 195 x 292,5 cm, óleo s/ tela)
Exposição de Pintura de Luís Herberto na FDL/ Centro Cultural de Cascais
Dos corpos pouco gloriosos
A primeira evidência que se destaca da nova série de trabalhos de Luís Herberto é a sua qualidade retratística. Todos eles foram realizados a partir da pose dos modelos com quem habitualmente trabalha. Não lhes conhecemos os nomes. Mas podemos identificar com facilidade as feições e os modos, os gestos dos corpos que se prepararam para ser olhados por durante um período de tempo mais ou menos longo, a roupa, enfim, que quase sistematicamente traduz a idade, o lugar social e a função: jovem ou adulto, trabalhador ou ocioso, talvez um (ou uma) colega ou um amigo. Ou mesmo, nada de tudo isto: o retrato, ao fixar na tela a imagem da pessoa retratada, tem esta capacidade de convocar no observador a projecção psicológica e vivencial do retratado. Que pode, ou não, coincidir com a verdade.
Foi Walter Benjamin que disse que era no rosto fotografado que se refugiava o último brilho da aura. Benjamin pensava nas imagens reprodutíveis pela fotografia, e reservava para a pintura, segundo ele, decadente, a permanência dessa mesma aura. Mas os anos que se lhe seguiram deram-lhe alguma razão, quanto mais não seja na irresistível compulsão que todos temos em guardar a imagem fotografada daqueles que amamos. Pouco importa: no rosto e na pose, e na sua indelével colagem a um real que passou, e que é aliás pontuado pelo recurso à fotografia e ao cinema em diversas fases do seu trabalho, reside o fascínio da pintura de Luís Herberto. Mesmo que, afinal, estes retratos não o sejam realmente: nem os modelos ostentam nome e apelido, nem a pintura que é a sua se identifica pela semelhança e o reconhecimento que definem o género do retrato.
Restam assim corpos. E o corpo possui uma riqueza de significados inegável desde que se constituiu como motivo moderno. Não nos referimos aqui aos corpos ideais de gregos e romanos, nem sequer, seu dilecto filho, ao corpo perfeito e geométrico do modelo da Renascença. Esse corpo, ainda dotado da aura que assinalava o seu referente divino e intocável, abdicava de qualquer indício da mortalidade e decadência – da carne – que permaneciam reprimidas e ocultas. Só Caravaggio, nos seus jogos de revelação do homem e de ocultação da divindade, traduz, antes de todos os outros, a questão central do corpo: a de que é carne, condenado como tal à putrefacção e ao desaparecimento.
Um corpo pouco glorioso, assim, tal como estes corpos de Luís Herberto, que não hesita em mostrar com evidência a condição carnal que é a nossa. A inclusão de motivos eróticos japoneses ou, numa exposição anterior, de animais que evoluíam em poses ambíguas com um modelo feminino – ou ainda, também numa série antiga, de pinturas realizadas a partir de imagens do ataque às Twin Towers de Nova Iorque, concretizam a questão central do seu trabalho: a de que o corpo, centro das emoções e dos sentimentos, se prepara para o cumprimento do seu devir animal e para a destruição que inevitavelmente daí decorre.
Questionado sobre o seu trabalho, o artista refere que indicou aos modelos que traduzissem o ciúme e o desamor na sua pose. Os cenários foram escolhidos pela ausência de qualidades: espaços fechados, pintados de cores neutras, como quartos de hotel ou interiores de atelier. Esta neutralidade é voluntária: Luís Herberto envolve-nos numa rede de divisórias e biombos, de câmaras, cubículos e salas que nos força a interpretar a figura que nela se destaca. Ou, dito de outra forma, a olhar e a penetrar através desse olhar no espaço íntimo do retratado. Estamos fora de cena, dentro da obscenidade (e a palavra obscenidade tem esta raiz etimológica que indica um estar dentro da sujidade), da decomposição, muito mais do que da exibição dos corpos.
Voltamos ao que dissemos inicialmente: estes corpos perderam toda a aura que os ligava à imagem traduzida pela história. Conservam dessa longínqua herança a própria técnica e mesmo a possibilidade da representação. Estes dois eixos, a partir dos quais se desenvolve toda a obra de Luís Herberto, contêm em si o germe da sua negação: repare-se que o espaço que envolve cada personagem possui uma leveza e uma transparência que parecem negá-lo. Nem sempre estes corpos projectam sombras, como nem sempre o desenho consegue conter os excessos de tinta e cor dentro da forma de uma perna, de um pé, de um braço. Nesta atmosfera sem densidade, o corpo levita, torna-se imaterialidade, virtualidade. Como se o artista, afinal de contas, necessitasse da representação e das imagens deixadas pela História no nosso presente para manter a pintura dentro dos seus limites físicos. De certo modo, esta é uma pintura que se institui num tempo que também já não é o da verdadeira imagem, nem o da representação fiel de um modelo para sempre inacessível.
Georges Bataille, um pouco antes da segunda guerra mundial, defendia que o homem contemporâneo guardava a sua animalidade num tempo em que o devir deixara de fazer sentido. Essa animalidade concretizava-se no jogo, no erotismo, no riso. Ou seja, na gratuidade do corpo, despido então já de tudo o que o definira como humano. O jogo, o erotismo – ou o ciúme e o desamor, esses sinais de um vazio presente, tão evidentes na pintura de Luís Herberto.
Luísa Soares de Oliveira
(excerto do texto no catálogo)
Luís Herberto, natural dos Açores, professor na Universidade da Beira Interior, Covilhã, e artista cuja produção vê a luz do dia no seu ateliê de Carcavelos, é um dos representantes da moderna pintura portuguesa de registo figurativo cuja obra impressiona pelo porte e pela densidade psicológica das “personagens”. Inspirado na técnica do retrato mas adicionando-lhe o ingrediente ficcional que lhe permite transfigurar seres humanos sem história em pessoas portadoras de uma subjectividade através da qual ficam aptas a desafiar a sensibilidade do fruidor, o pintor chefia uma narrativa que só completa quando nela faz participar o seu próprio capital de experiência vivida. Entre o retrato e a “realidade” dos modelos focados há uma terra de ninguém que Luís Herberto ocupa com toda a gama dos seus recursos operacionais, sejam eles da ordem do desejo, da desordem emocional ou do contraste ilusão / decepção patente nalgumas composições mais arrojadas. A crítica de arte Luísa Soares de Oliveira, no texto que escreveu para o catálogo, refere, nomeadamente: “De certo modo, esta é uma pintura que se institui num tempo que também já não é o da verdadeira imagem, nem o da representação fiel de um modelo para sempre inacessível.”
A exposição Nós e os Outros, de Luís Herberto, é uma iniciativa da Fundação D. Luís I e estará patente ao público no Centro Cultural de Cascais de 30 de Julho a 25 de Setembro.
A exposição Nós e os Outros, de Luís Herberto, é uma iniciativa da Fundação D. Luís I e estará patente ao público no Centro Cultural de Cascais de 30 de Julho a 25 de Setembro.
www.luisherberto.com
tm. 967177062